O site da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde entrevistou Dr. Juan Gérvas -médico espanhol a quem já tivemos a satisfação de receber, juntamente com sua esposa Dra. Mercedes Pérez Fernández, em nossa I OFICINA SOBRE ACESSO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE, em Florianópolis. Abaixo, transcrevemos a entrevista:
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Dr. Juan Gérvas |
Juan Gérvas é bacharel e Doutor em Medicina pela Universidade de Valladolid (Espanha). Atua como Professor de Gestão e Organização de Atenção Primária à Saúde no Mestrado em Administração e Direção de Serviços Sanitários, Fundação Gaspar Casal (Madrid) e Universidade Pompeu Fabra (Barcelona). Também é Professor convidado de Atenção Primária à Saúde no Instituto de Salud Carlos III, Escuela Nacional de Sanidad, Departamento de Salud Internacional, Madrid e Professor honorário do Departamento de Medicina Preventiva e Saúde Pública, na Universidade Autônoma de Madrid. Desde 1980 Coordena a Equipe CESCA, grupo científico de pesquisa e análise da organização e atividade da atenção primária e é, desde 1986, Membro do Comitê Internacional de Classificações da Organização Mundial de Médicos de Clínica Geral/de Família (WONCA).
1) Quais aspectos você considera positivos e negativos na saúde do Brasil e quais os maiores avanços da APS brasileira?
A respeito da saúde no Brasil, destaco como positivo o controle das doenças infecciosas e, até certo ponto, das causas externas da morte. O padrão de morbidade e mortalidade brasileiro é de um país desenvolvido, com algumas exceções, como a maior prevalência da tuberculose, hanseníase e dengue. Persiste uma alta taxa de mortalidade por homicídios e também mortalidade consequência de abortos voluntários ilegais. Chama a atenção a alta taxa de cesarianas, com seu impacto negativo na mortalidade materna.O gasto sanitário é alto, em torno de 8,5% do Produto Interno Bruto, e negativamente destaco que seu componente público não chegue a 50%. Por isso é possível dizer que o Brasil, do ponto de vista financeiro, carece de um sistema público de cobertura universal. A Atenção Primária à Saúde (APS) é um componente central na estrutura sanitária brasileira. Como pontos positivos destaco sua maior implantação nas áreas de baixo índice de Desenvolvimento Humano, seu impacto na saúde e nas hospitalizações evitáveis. Também é positivo que a APS tenha desenvolvido a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que inclui um médico generalista especializado (o médico de família) em uma equipe multidisciplinar e conserva os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) como pilar para o trabalho com a comunidade. É relevante o contínuo apoio federal, estadual e municipal à ESF.
2) Em recente levantamento sobre o trabalho das Unidades Básicas de Saúde brasileiras, a que pontos positivos e negativos gostaria de dar destaque?
Nos meses de abril, maio e junho de 2011 visitamos um total de 70 unidades básicas (sete horas em média em cada uma), em 19 estados, entrevistamos mais de 500 profissionais, e observamos diretamente até 150 encontros profissional-paciente-família-comunidade. Obtivemos informação em primeira mão, como forma de comparar a teoria com a realidade. Com base nessa pesquisa elaboramos um amplo relatório, disponível em português e espanhol (e com resumo em inglês):
Como pontos positivos, deve ser destacada a dedicação dos profissionais, a distribuição das unidades segundo a necessidade das populações, a dotação de odontologia e de medicamentos, o interesse de políticos e gestores pela melhor prestação de serviços, a existência da residência para a formação de médicos e de outros profissionais, e a capacidade de dar resposta a problemas muito variados (desde a mulher gestante às vacinações das crianças, passando pelo combate à dengue e a atenção a hipertensos e diabéticos). É muito positiva a existência de um sistema de informação com definições homogêneas, e em alguns casos com apoio no prontuário (história clínica) eletrônico. Também é importante a presença da atividade de pesquisa, com excelentes publicações nacionais e internacionais. Deve destacar-se a ausência da indústria farmacêuticas nas unidades básicas.
Como pontos negativos temos a escassa dotação tecnológica das unidades básicas (ancoradas em um desenho de predominância das doenças infecciosas, sem elementos tão básicos quanto a morfina e o oftalmoscópio, por exemplo), a preponderância dos programas verticais e, em consequência, da prestação de serviços verticais (uma tarde para grávidas, uma manhã para crianças, uma tarde para hipertensos, uma manhã para domicílios, etc.), a existência de uma "cultura da desconfiança" (com gestores quase sem autonomia), o "horror à incerteza" clínica (existe a intenção de protocolar tudo, do acolhimento ao atendimento de urgências), um "déficit curativo" (em muitos casos a prevenção e a promoção predominam de tal forma que parecem não ser necessárias atividades nem curativas nem de reabilitação), equipes "orgânicas" mas não funcionais, a fragilidade da ESF (em cada município é dado o mesmo nome a realidades muito distintas, com implantação de Unidades de Pronto Atendimento para dar resposta ao "déficit curativo"), e os distintos tipos de contratos de médicos e outros profissionais, que não estimulam a permanência nem o compromisso com a população (a "rotatividade" é "excessiva"). É uma APS rígida, "focada" no paciente com capacidade de adaptação a protocolos e programação, pouco resolutiva tanto para problemas agudos quanto crônicos, e com uma excessiva derivação (encaminhamento). O sistema de informação está centralizado no processo, e não é utilizado para uma competência referencial (benchmarking). Além disso, a coordenação entre os níveis é escassa ou nula, como demonstra a frequente ausência de relatórios (contra-referência) de especialistas e hospitais.